9 de Outubro de 2025 Rafael Marques de MoraisEm 2015, a empresa estatal Cimangola contraiu uma dívida de 30 milhões de dólares junto do Banco Montepio, para construir a unidade industrial Nova Cimangola II. Em Setembro de 2023, essa dívida foi adquirida pela empresa Transkamba por apenas 6,5 milhões de dólares, pagos com fundos da própria Cimangola. Pouco depois, a empresa estatal passou a pagar 39 milhões à Transkamba, com entregas diárias de cimento. Este é o enredo explosivo que envolve a Nova Cimangola, empresa tutelada pelo Estado angolano, sob gestão do cidadão português Pedro Mariano Campos Pinto, que montou uma complexa teia de transacções com ligações directas à sua rede pessoal de interesses. A operação passou por bancos, empresas de fachada e contratos manipulados, deixando no ar suspeitas de favorecimento pessoal, desvio de fundos públicos e manipulação de activos com chancela institucional.Compra de créditosO presidente da Comissão Executiva (PCE) da Cimangola, Pedro Pinto, montou um esquema de aquisição da dívida de 30 milhões de dólares, contraída junto do Banco Montepio, de Portugal, a 29 de Julho de 2015. O empréstimo serviu para a montagem da segunda unidade de produção do Sequele, a Nova Cimangola II, no município de Cacuaco, em Luanda. Até Março passado, o referido gestor exerceu a função de presidente do Conselho de Administração (PCA). Nesse mês, o político Agostinho da Silva, ex-vice-governador de Cabinda e do Bengo, sucedeu-o no cargo de PCA.
Pedro Mariano Campos Pinto, presidente do Conselho de Administração da Comangola até Março de 2025Como é que foi montado o esquema? Em Setembro de 2023, a empresa Transkamba, detida integralmente pelo cidadão chinês Wei Lin, adquiriu a dívida da Nova Cimangola ao Montepio Geral por apenas 6,5 milhões de dólares. Fê-lo com fundos providenciados pela própria cimenteira nacional. Entretanto, a 24 de Outubro de 2024, a mesma Nova Cimangola negociou o pagamento da dívida à Transkamba, já orçada em 39 milhões de dólares com juros, com entregas diárias de cimento. Com esse esquema, a Transkamba embolsa 39 milhões de dólares sem ter gastado do seu bolso uma moeda de cobre ou uma simples nota de um dólar.Sublinhemos bem: uma dívida de 30 milhões de dólares da Cimangola foi comprada pela Transkamba por 6,5 milhões de dólares ao banco emprestador, com dinheiro da própria Cimangola. E agora a Transkamba tem um crédito de 39 milhões de dólares sobre a Cimangola.Contactada pelo Maka Angola, a Nova Cimangola confirma a transacção. Segundo a empresa, isso permitiu “reduzir o nível de endividamento”, “reforçar o balanço” e “minimizar exposição cambial”, alegando que o pagamento em cimento representaria um “desconto muito considerável” face ao custo de produção. O Maka Angola publica aqui o questionário com as respostas integrais do Conselho de Administração da Cimangola, para análise cabal dos leitores.“Uma das condições exigidas pelos bancos financiadores foi a capitalização dos juros vencidos ao longo de cerca de três anos, período em que a Nova Cimangola esteve em processo de reestruturação financeira. Isso levou a um aumento da exposição de todos os bancos financiadores, o que no caso do banco estrangeiro – Caixa Económica Montepio Geral – consubstanciou num aumento de exposição em cerca de USD 9M [nove milhões de dólares]”, afirma a empresa.A Nova Cimangola adianta também que, “durante o processo de reestruturação, o banco Montepio deixou claro que a intenção seria reestruturar o financiamento, para que pudesse de seguida viabilizar a venda da sua posição e deixar de ter exposição a empresas da Eng.ª Isabel dos Santos e a Angola”.Segundo a Nova Cimangola, após a sua reestruturação, “encontrou-se numa situação de mora, o que acarretou o pagamento de juros de mora, dado que seriam necessárias divisas para fazer face ao serviço de dívida do Montepio e as mesmas eram (e continuam a ser) escassas”. O Banco Montepio, refere a resposta, “realizou várias iniciativas para tentar vender o crédito sem, no entanto, ter despertado o interesse de algum banco nacional ou estrangeiro. Neste contexto, o referido banco alargou o espectro a sociedades não financeiras e solicitaram o apoio da Nova Cimangola, no sentido de verificar se haveria algum cliente da empresa que poderia estar interessado em adquirir o crédito. Foram sondados vários clientes, tendo a Transkamba demonstrado interesse na operação de aquisição de crédito malparado”.A Nova Cimangola manifesta ter sido alheia “às propostas, negociações, termos e condições da venda do crédito, com excepção de ter solicitado que este crédito não fosse pago em USD, mas sim por encontro de contas pelo fornecimento de cimento, respeitando o pari passu previsto contratualmente”.De acordo com a documentação consultada pelo Maka Angola, a correspondência, por via electrónica, de negociação, transferência da dívida à Transkamba e pagamentos desta ao Montepio foi meticulosamente instruída e rastreada por Pedro Pinto e o seu director jurídico, André Barreiros, compatriota de Pedro Pinto, com Ricardo Pinto Bastos, do Montepio, e Banco de Crédito do Sul (BCS). Wei Lin aparece apenas em cópia.“Finalmente, será de salientar que a Nova Cimangola tem conhecimento que a transmissão do crédito foi assessorada por empresas de consultoria e firmas de advogados de primeira linha e escrutinada pelo Banco Nacional de Angola, Banco de Portugal e Banco Central Europeu”, afirma a empresa.Transkamba entre kambasA 24 de Outubro de 2024, a Transkamba, entrou em contacto com o Banco BIC, o líder do sindicato bancário de créditos à Cimangola, informando sobre o contrato-promessa que celebrou, no mesmo dia, para cessão de 75 por cento da dívida adquirida junto do Montepio à Sociedade de Fomento Industrial (SFI), no valor de 25,8 milhões de dólares. O Banco BIC concordou e consentiu a operação, apondo as assinaturas das suas directoras de área e centros de empresa – respectivamente, Dácia Nascimento e Mafalda Carvalho – na referida comunicação.Por sua vez, a 18 de Março de 2025, o actual PCE da Cimangola, Pedro Pinto escreveu ao Instituto de Gestão de Activos e Participação do Estado (IGAPE), comunicando a venda da sua participação, de apenas 0,10%, no capital da empresa, à SFI por um milhão de dólares. A Transkamba, a Andali, a SFI e Wei Lin partilham todos o mesmo endereço sede, que é também a residência oficial do cidadão chinês. A SFI S.A. tem como administrador único Carlos Alberto Nóbrega Rey. Trata-se de mais uma manobra de valorização artificial de activos. Este conjunto de operações evidencia a interligação entre Pedro Pinto, a Transkamba e a SFI, com o objectivo de misturar dívida e acções directas sob o mesmo controlo.Por sua vez, a sociedade justifica que “a venda de 0,10% do capital social da Nova Cimangola à SFI respeitou todos os trâmites legais e estatutários previstos para a alienação de acções, nomeadamente o exercício do direito de preferência dos restantes accionistas”. Informa ainda que “nenhum dos accionistas exerceu o direito de preferência, tendo o IGAPE, na qualidade de fiel depositário das participações da Ciminvest, enviado um ofício à Nova Cimangola alegando que não exerceria o direito de preferência”. Desse modo, “a participação de 0,10% do capital social da Nova Cimangola, anteriormente detida pelo Dr. Pedro Pinto, foi vendida à SFI, nos termos e condições pelas partes acordadas, não havendo qualquer ligação à operação de cessão da dívida sindicada”.O esquema das comissõesA partir do final de 2019, Pedro Pinto, estruturou os pagamentos relativos à exportação de clínquer para a empresa espanhola PSE Cement Trading S.A., através do modelo FOB (Free on Board, que significa que o vendedor é responsável por todos os custos e riscos até que a mercadoria seja embarcada no navio designado pelo comprador; a partir do momento em que os bens estão a bordo, o comprador assume os riscos e custos, incluindo transporte internacional, seguro, taxas alfandegárias e entrega final).Conforme documentos em posse do Maka Angola, enquanto a tonelada métrica de clínquer exportada pela Cimangola valia, em média, 55 a 60 dólares no mercado internacional, esta vendia à PSE por 28 dólares a tonelada. Por sua vez, em forma de comissão, a PSE pagava a empresas que serviam como “barrigas de aluguer”, sendo uma parte significativa das receitas desviada sob a forma de comissões para empresas controladas por Pedro Pinto e associados.Entre 2022 e 2023, a PSE pagou mais de nove milhões de dólares à Andali (US$ 6,8 milhões), Techbelt (US$ 1,7 milhões), e o restante a Wei Lin. Em Junho de 2023, o cidadão chinês recebeu uma comissão de US$ 470 000, na sua conta no Novo Banco, em Portugal, equivalente a cinco por cento da venda de 47 mil toneladas de clínquer à PSE.Sobre a possibilidade de sobrefacturação, Pedro Pinto declarou ao Maka Angola que “não existem indícios documentados de sobrefacturação na Nova Cimangola”, reafirmando ainda que a empresa “é auditada pela Deloitte (externa) e apoiada pela KPMG no que respeita à auditoria interna, não tendo quaisquer reservas de auditoria registadas”.A papelada consultada pelo Maka Angola demonstra que os pagamentos de comissões à Andali e à Transkamba foram depositados em Angola e que esses fundos serviram para adquirir a dívida ao Montepio, em operações realizadas através do Banco de Crédito do Sul (BCS).Formalmente, a Andali tem como proprietário Francisco Paulo Salvador Vaz e filhos. Porém, o endereço da Andali é o mesmo da Transkamba e da residência oficial de Wei Lin, no município e distrito urbano de Viana, Bairro Km 35, casa s/n.°, “nas imediações do antigo Controlo da Polícia”. Esse mesmo endereço também é a sede da Sociedade de Fomento Industrial (SFI), cuja participação no enredo adiante se explicará.Por sua vez, a Techbelt, com sede em Aveiro, Portugal, é detida pelo cidadão António Santos, ex-director de compras da Nova Cimangola, que ora actua como um dos principais fornecedores externos de equipamentos para a cimenteira angolana.Em relação ao contrato de exportação de clínquer com a espanhola PSE Cement Trading, a Cimangola justifica o modelo FOB como forma de “minimizar responsabilidades” numa situação de “escassez de divisas” e afirma que os preços foram definidos “respeitando o preço de referência internacional para a África Subsariana”.Apesar das evidências documentais que mostram o envolvimento directo de Pedro Pinto e André Barreiros nas negociações e fluxos financeiros, a empresa insiste que os esclarecimentos foram prestados ao IGAPE e Ministério do Comércio e Indústria “por escrito e posteriormente em reuniões presenciais”.“A Nova Cimangola foi reconhecida pelo Executivo com os prémios de maior produtor de cimento em Angola e o prémio de maior exportador do país do sector não petrolífero”, justifica a direcção da empresa.Para já, todos os contratos assinados entre a PSE Cement Trading e a Andali, em nossa posse, são rubricados por Wei Lin, como patrão da empresa.ConclusãoO caso Nova Cimangola expõe um modus operandi de manual: um gestor público estrutura esquemas financeiros complexos com aparência de legalidade, mas que, na prática, resultam no desvio de valor estatal para círculos privados ligados a si mesmo. As justificações formais não escondem os rastos evidentes de conflitos de interesse, valorização artificial de activos e um ciclo de opacidade que envolve entidades estatais, bancos e empresas de fachada.Tudo isso se desenrola sob o olhar cúmplice – ou distraído – das autoridades de supervisão, num país onde a promiscuidade entre poder político, interesses empresariais e gestão pública continua a ser terreno fértil para a impunidade.
